22 outubro, 2006

Ponto final


Em uma cidadezinha ao sul da Espanha à trabalho, buscando inspiração para meus romances, cansado das mesmas obras de Picasso nas paredes resolví dar um passeio na bucólica cidadezinha onde o principal divertimento era assistir às touradas que há muito alegravam gerações. O sofrimento dos animais aqui não pode ser maior que o espetáculo, que o brilho do toureiro. Alcansei minha capanga e saí...
Lembro da primeira vez que ví a beleza dos seus olhos. A garoa fina de julho caia e molhava seus lisos cabelos, desarrumados pelo vento de fim de tarde. Você estava sozinha, parecia triste; mas, ainda triste, sua beleza se destacava em meio à multidão. Meu coração se encheu de uma alegria inexplicável quando você olhou para mim e, meio tímida, sorriu. Decidido, mas com o olhar de uma criança fascinada pelo presente recebido, fui ao seu encontro, perguntei seu nome, me apresentei; sentados em um dos banquinhos da pequena e bela praça onde crianças brincávam, conversamos como amigos de infância, observando os pombos escolhendo suas migalhas.
A brisa que antes tão agradável era, agora começava congelava. As horas passaram e nós continuávamos sentados no mesmo banco, de fente para uma igreja construída pelos fundadores do vilarejo, da pequenina cidade acolhedora como uma mãe de braços abertos. A convidei para ir a uma cantina à alguns passos dalí, para tomarmos um legítimo vinho espanhol. Seu cachecol amparava os frios ventos que vinham em nossa direção e depois de alguns passos chegamos a um barzinho, o único das proximidades. A noite já se mostrava presente e vestí minha capanga, antes de pedir um vinho e sentarmos para conversar mais. As palavras saíam com certa dificuldade, não sei se pelo frio ou pela magia do seu olhar, que me hipnotizava, me transportava para um mundo onde tudo era perfeito, e só havía nós dois, mais nada. Eu escritor, você, uma bela repórter que estava na Espanha a trabalho, cobrindo algumas investigações sobre o sumiço de uma tela de Picasso, importante pintor espanhol nascido na cidade de Andaluzia, o maior mestre das pinturas do século XX.
'Os investigadores descobrirão onde está esta tela'- dizia, toda empolgada por estar no meio das investigações, ser amiga de um dos investigadores chefes e ter flashs e entrevistas com exclusividade, entregadas fresquinhas para a redação da revista onde trabalhava. 'E quando o caso for solucionado, quero tirar umas férias, estou exausta.'
'Posso lhe levar comigo para o Brasil'-falei-'para conhecer as belezas tropicais que lá existem'. você sorriu. O vinho ajudava na articulação das palavras, e pedimos mais uma garrafa, a nossa já tinha se esgotado entre palavras e sorrisos. Os vinhos da Espanha são realmente os melhores.
Conversamos sobre trabalho, signo, músicas, descobrimos muitos pontos em comum, gostamos um do outro. Talvez efeito do vinho, talvez o ar romântico do bar, mas, meio sem jeito, sentí seus lábios tocarem os meus pela primeira vez. O tempo parou, sentí algo engraçado em meu corpo, meu coração bateu mais forte; o mundo parecia parar para ver nós dois alí, em uma cidadezinha calma e aconchegante da espanha, saboreando o melhor vinho do mundo, sentindo o amor se aproximando de mansinho, tal qual um gato que espreita o novelo de lã sobre o sofá.
Cogitei pedir mais uma garrafa, mas desistí. A convidei para o hotel onde estava hospedado, e você aceitou; então agradecemos ao gentil senhor dono do bar e saímos. Agora, como um cobertor, as estrelas cobriam o limpo céu ainda com tons azulados, proporcionando uma beleza sem limites. O vento continuava impiedoso, gelado, me lembrando a região sul e sudeste do meu querido Brasil. A abracei e enfrentamos o vento, o hotel era logo alí perto, quase ao lado da praça onde conhecí um anjo, conhecí você.
Chegamos, cumprimentamos o jovem rapaz que anotava os nomes dos hóspedes, e dava informações turísticas sobre o local, e fomos para o quarto. Mesmo que dentro do hotel ainda estivesse quentinho, continuei abraçado com você, seu calor era melhor que milhões de sois juntos. Você entrou, sentou e encontrou um de meus últimos livros escritos no Brasil, que ainda não tinha sido lançado, faltava seu ponto final. Prometí presentear-lhe com aquele exemplar autografado, depois da conclusão da obra que agora você lia, em primeira mão, o prólogo. Coloquei um disco, e relaxei enquanto a via concentrada em minhas palavras grafadas no papél. Por instantes você ria com algumas aluzões que costumo fazer em meus livros, em alfinetadas que dou em nomes grandes da sociedade ou simplesmente por achar divertido algum parágrafo das minhas histórias.
Depois de algumas páginas lidas, olhou para mim em silêncio e sorriu. Levantou-se, pousou o livro sobre a estante e veio em minha direção, com seu casaco marrom e botas de igual cor. Sentado na cama, apreciei sua beleza se aproximar de meus olhos, de minhas mãos, de minha mente. "As maiores loucuras da nossa vida, são cometidas silenciosamente dentro de nossa cabeça..." Sentando-se ao meu lado, olhou em meus olhos e me beijou, com um beijo que jamais tinha provado igual no alto dos meus 35 anos de idade. Você se deitou na cama e desabotoou o casaco. Beijei seu rosto, acariciei seu pescoço, nos amamos a noite toda ouvindo meu disco e o barulho da fina chuva que caia lá fora. Sua silhueta à meia-luz era a escultura mais bela que meus olhos já viram em toda a vida; certamente Auguste Rodin não seria capaz de tratar em gesso tal beleza.
Na manhã do dia seguinte, acordei com a claridade da janela em meu rosto, denunciando a falta de alguém ao meu lado. Sobre a cama, eu e um bilhete, escrito com a mesma caneta que escreveu o ponto final em muitos livros, em muitos esboços de projetos, em muitas vidas de personagens que, na irreal ficção, se beijam, se amam e vão embora no dia seguinte, como se nada tivesse acontecido. As letras no pedaço de papel diziam que uma pessoa me amava, que esta mesma pessoa ficou fascinada por meu sorriso, por meus cabelos lisos e castanhos, mas que precisava partir, não podia se apaixonar mais uma vez. Não era correto, não para ela. Uma lágrima molhou o pequeno pedaço de papel que se perdeu em uma amarga manhã na Espanha. Acendí um cigarro e tentei entender o carvão disposto sobre a tela, formando linhas. Uma cópia perfeita de Picasso na parede.
O livro, agora com um ponto final e autografado, continuará em alguma estante, aguardando você voltar.

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