Não é belo, não é otimista, não segue parâmetros nem tampouco é coerente. É apenas o que eu precisava escrever. Se você gostar, recomende, comente, elogie. Se não gostar, critique, ignore.
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Pelo chão do quarto várias roupas jogadas.
Seus olhos encaram uma figura pálida, magra, patética no espelho. As olheiras denunciavam as muitas noites em claro e os olhos, que antes tanto encantavam pelo belo castanho, pareciam agora ter o peso de cem anos.
Peter estava em pé estático diante do espelho do banheiro. Não escrevera nenhuma carta de despedida, não queria dividir seus sentimentos daquele momento como todos faziam nos filmes da TV. A morte é um processo lento que, mesmo quando apressada voluntariamente, não precisa estar estampada nos jornais. Quando o nauseante odor se espalhasse pelo prédio alguém o encontraria, certamente um desconhecido, e aquele momento era único, pessoal.
Foi até a varanda do seu apartamento e olhou a rua quase vazia; apesar daquele ser um dia triste, Peter se sentiu alegre -como a muito não se sentia.Sentiu o vento da manhã lamber seu rosto, acariciar, brincar com seus cabelos como um amigo querido a se despedir. Reparou em um pequeno grupo de crianças que brincavam a caminho da escola e os garis, sempre pontuais, faça chuva ou faça sol, cumprindo seu trabalho. Notou também duas pombas disputarem farelos de pão na calçada.
Olhando para cima viu o céu da manhã em tons cinza e, embora não pudesse ver o horizonte distante, sabia que certamente havia um manto quase roxo perfilhando a linha distante que se une com o infinito. O homem, com toda sua inteligência, soube mesmo como se manter preso dentro de uma imensidão fenomenal, com seus arranha céus, imaginando estar mais próximo de Deus enquanto mata a esperança do seu próximo. Sentiu-se sufocado e pequeno em meio aos blocos mudos de concreto, resolveu entrar para fazer o que precisava ser feito.
Os quadros na parede da sala lhe trouxeram as lembranças de dois anos atrás, quando havia descoberto o gosto pela pintura. Era mais novo, bonito, tinha dezessete, tinha muitos planos, energia e alguns amores. Suas obras eram as mais elogiadas em exposições pela cidade: tornara-se o 'pintorzinho' mais querido da turma. As lágrimas surgiram e, apesar do esforço sobrenatural para contê-las, não foram apenas as pálpebras que ficaram molhadas.
Mas lembrou do seu objetivo e retornou do mundo das lembranças, um mundo perigoso que guardava muitas surpresas e segredos. Preferiu agir logo, não queria cair no erro de se arrepender no meio do caminho como outrora.
'É agora' - pensou consigo.
Um tiro alarmaria os vizinhos e, caso algo desse errado, os médicos ainda poderiam conseguir salvar sua vida e isso era o que ele não queria naquele momento. Enquanto alguns padecem nos leitos dos hospitais, implorando a Deus por mais uma chance outros poucos -por motivos que jamais iremos compreender, porque a taça da dor é diferente para cada um de nós- preferem abandonar seu caminho. Há aqueles que pulam de edifícios, ingerem altas doses de remédios, cortam seus pulsos, mas há também aqueles que não atentam contra seu corpo: estes preferem ignorar os amores da vida, deixar de lutar pelos seus sonhos. Perdem o sorriso dos lábios e a luz do olhar; estes sofrem a mais terrível morte que pode existir.
Peter quase optou por jogar-se na água mas sua fobia não lhe permitiria, nem em circunstâncias tão especiais. Um pavor existente desde sua infância que ninguém sabia explicar.
Abriu as caixas de remédio e retirou os comprimidos com pressa; alguns caíram no chão mas não faziam falta: para cada um que caiu havia pelo menos três sobre a pia do banheiro. Neste momento agradeceu ao curso de medicina que estava fazendo e pelo estágio -não remunerado- no hospital da cidade. Os meses de trabalho na 'casa das dores' (como Peter gostava de se referir a hospitais) estavam sendo recompensados, e muito bem pagos, naquele instante.
Se jogar da varanda do seu apartamento também seria uma solução simples e, praticamente, indolor. Aprendera no curso que, com a pancada da cabeça no chão, seus reflexos se desligariam e não sentiria dor alguma, caso conseguisse -milagrosamente- sobreviver à queda. Contudo, a cena de um crânio aberto no meio da calçada não é algo agradável de se ver e, naquele momento, Peter não estava interessado em chocar ninguém. Poderia vir a ser o trauma eterno de uma criança que passasse na rua...Melhor deixar para morrer quietinho em seu quarto, assim quem o encontrasse seria treinado para tais situações, trabalharia com isso diariamente, não seria um choque.
Terminou de preparar seu 'café-da-manhã' sobre a escura pia do banheiro, encheu um copo com água e, meio desajeitado, apanhou o primeiro monte de comprimidos e os ingeriu. Fitou seus próprios olhos no espelho mas não sentiu culpa ou se arrependeu: iria até o fim! Aos poucos aquele monte de remédios ia desaparecendo e, depois de alguns minutos, Peter precisou de mais um copo d'água.
'Falta pouco' - murmurou baixinho, olhando a água no copo.
Uma sirene de ambulância fez-se ouvir perto dali. Seus ouvidos ouviram mas ele não se preocupou, não correu até a janela mais próxima para ver o que era, com quem era, algo que todos fazem quase instintivamente. Ele já não precisava se preocupar com isso, estava se libertando de tudo naquele momento.
Restavam as últimas seis. Tomou-as sem pensar duas vezes. Fazia pelo menos dez minutos que ele começara a beber a morte e, até então, nenhum efeito aparente. Largou o copo sobre a pia e moveu-se para o quarto, atravessando um sem-número de roupas espalhadas pelo chão. Nunca fora organizado e, ao contrário de uma tal
'Verônika' de um tal livro famoso -de um tal escritor mundialmente conhecido- ele não iria arrumar toda a casa para morrer.
'A morte não há de ligar para a bagunça, só precisa me levar com ela.'
Sentou-se na cama e observou seu último quadro pintado, um bosque verde que se perdia na imensidão da distância. De longe contemplou sua obra e sentiu-se contente por ter, um dia, conseguido pintar algo tão belo, tão puro, tão pessoal. Teve a certeza de que foram bons tempos.
De repente percebeu que tudo estava silencioso demais, uma calmaria sem igual. Percebeu a sensação que teve quando, ainda pequeno, viajara para a praia e seus ouvidos ficaram 'entupidos'. Uma sensação engraçada e que toda criança adora enquanto brinca de desenhar no vidro do carro. Uma leve dormência passou pelos seus pés e mãos, se instalando e crescendo cada vez mais. Peter ficou contente, parecia que os remédios -enfim- estavam fazendo efeito.
Então, sem qualquer aviso ou cerimônia, sentiu a primeira pontada no peito que o fez deitar na cama. Parecia que uma faca havia sido cravada em seu coração neste momento. Levou a mão ao local da dor e outra agulhada se fez sentir, mais forte que a primeira.
E outra. E mais outra.
Apesar de Peter estar alcançando seu objetivo sentiu, neste momento, um medo irracional e suas mãos dormentes buscavam -sem força- agarrar o lençol da cama, enquanto seu corpo inteiro se retorcia de dor. O instinto natural de sobrevivência não concordava com a idéia de Peter e se agussava a cada enjôo, a cada pontada em seu peito. Estava ficando sem ar, ficou tonto enquanto se enrolava na fina e gostosa coberta marrom, presente de sua querida mãe antes de falecer.
Jamais sentira algo igual: a dor era terrível mas o jovem rapaz -apesar do medo- não estava arrependido; sentiu uma corrente elétrica passar pelo seu corpo dos pés a cabeça e retornar para o ponto de origem, várias vezes seguidas. Olhou para a parede branca ao seu lado e tudo parecia embassado, confuso, ele tinha perdido a noção do espaço. Sentiu seu corpo leve e tudo parecia estar girando ao redor dele, então sentiu um forte enjôo.
'Se vomitar não morro' - ele sabia .
Na sala, o telefone começou a tocar. Peter ouviu mas não deu importância, parecia que havia um cachorro vivo em seu estômago, o devorando cruelmente aos poucos.
'Esta é a caixa de mensagem (...) Deixe sua mensagem após o sinal.'
'- Alô, filho? Estou ligando pra avisar que devo chegar depois de amanhã por aí, na hora do almoço. Amanhã pego o avião com escala e devo chegar até a hora do almoço. Saudades de você, meu querido.
Abraço, filhão. Te amo muito.'
Peter estava paralisado sobre o lençol retorcido e nenhum músculo se mexia. A vista estava cansada e sua cabeça, ao contrário do restante do corpo, parecia pesar uma tonelada. Sentiu um gosto amargo, porém adocicado, e sua boca ficou úmida, estranha. Tentou se mexer mas não conseguiu, seu corpo não obedecia suas ordens, parecia não estar mais ali. Em um esforço descomunal conseguiu abaixar os olhos e ver, próximo ao seu rosto, uma grande mancha escura no alvo lençol que, antes, tão branco era agora tinha uma cor vermelho escuro.
Uma lágrima rolou dos seus olhos semi-abertos e Peter se sentiu livre, feliz, antes da escuridão tomar conta dos seus olhos, da sua vida. Pensou ter ouvido novamente uma sirene na rua, talvez estivesse delirando.
Já não fazia diferença, não naquele momento. Nem nunca mais.
J.L
(Trovador Solitário)
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